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ÊXODO

21.11.2023

Em 2010 foi o ano com a primeira academia de CrossFit afiliada aqui no Brasil. Evidentemente não foi aquele estouro imediato, era algo novo, desconhecido, principalmente pela abordagem de treinamento e os exercícios diferentes que a grande maioria das pessoas não haviam ainda vivenciado. Mas já, naquele momento, houve o que considero o primeiro movimento migratório no universo fitness.


É importante tentar visualizar dessa maneira para compreender. Um universo, e dentro dele, pequenos núcleos aonde as atividades de saúde e bem-estar acontecem. Temos o hábito de usar o termo “mercado” para se referir a isso, mas não quero olhar sob a ótica de “mercado”, quero fazer minha reflexão e análise pelas pessoas e os grupos que se formam a partir de uma atividade. O esporte e atividade física criam uma cultura com seus hábitos e comportamentos peculiares. Pequenos grupos de pessoas se reúnem ao redor dessas práticas e alteram a maneira de viver suas vidas a partir da experiência física. Com isso, posso dizer que, apesar de toda técnica e benefícios físicos que o esporte e atividade física proporcionam, a maior importância está no fenômeno social. Ou melhor, gozamos do bem-estar porque vivemos o fenômeno social. São as pequenas comunidades e todas as relações humanas que acontecem que transformam uma simples sessão de treino em uma experiência de vida ao ponto de mudar a própria maneira de viver.


Bom, voltando ao ano de 2010 e o início do CrossFit aqui no Brasil, posso dizer que ali iniciava o primeiro movimento migratório no universo fitness. Primeiro é preciso entender um pouco como funciona o CrossFit não somente como programa de condicionamento físico mas também como organização. Para entender o programa de treinamento vale à pena assistir um vídeo e dar uma lida nesse texto que escrevi há um tempinho atrás que explica o seu conceito. Segue o dois links abaixo:


Não é CrossFit – Artigo


Entretanto, quando pensamos na organização, é fundamental explicar (mesmo que de forma resumida) para compreender os movimentos migratórios que tenho tentado analisar. Para fazer um pedido de afiliação a marca CrossFit (ter uma academia com a logomarca)  é preciso ter um certificado de treinador nível um. Esse certificado é obtido após a participação de um curso e, no final dele, a pontuação mínima necessária em uma prova teórica. Com certificado em mãos você pode entrar com o pedido de afiliação e, uma vez aprovado, ter sua academia (ou “Box” como costumam dizer) com a logomarca. O interessante é também entender como se atribui essa afiliação. Toda e qualquer afiliação está vinculada a um único treinador (a) certificado (pessoa física) e esse treinador (a) só pode ter uma única unidade, Caso você queira empreender e aumentar unidades, é necessário afiliar usando outro certificado de treinador (a). Sendo assim, você vai ter outra razão social e dificilmente irá conseguir ter uma rede com um único proprietário (talvez esse seja um dos motivos do desuso da logomarca por alguns empreendedores). Em 2010, logo no início do CrossFit aqui no Brasil, muitos professores começaram a visitar e fazer cursos nas poucas opções de “boxes” que haviam naquele momento. Esses professores, em sua grande maioria, não estavam apenas preocupados em melhorar suas capacitações profissionais. Posso dizer, porque fiz parte desse movimento, que na verdade havia um certo tédio e cansaço do modelo de treino proposto nas academias naquela época. E, partir daí com os professores, começou a ter a primeira debandada de público das academias convencionais. Professores passaram a treinar CrossFit em academias de professores. Uma academia de professor era um movimento de contracultura as academias convencionais. Tudo, ou melhor, quase tudo o que não podia ser feito dentro das antigas academias era permitido nesses espaços. Treinar sem camisa, som altíssimo com a música de preferência do professor (muitas vezes de péssimo gosto), paredes grafitadas, pés descalços, pesos arremessados no chão, pó de magnésio e uma estrutura de aula completamente diferente. Um movimento de contracultura é basicamente uma antítese a cultura anterior e, ao renunciar alguns hábitos comportamentais, se dá início à ações de liberdade que permitiram possibilidades práticas de algo que parecia inviável de aplicar. Contudo, no pacote de fazer o oposto ou proibido, negou-se também as ferramentas de administração e gerenciamento criando um efeito em cadeia de inúmeros fechamentos e falências de academias desse formato anos depois, mas isso é assunto para outro texto... Vou continuar analisando o fenômeno social.


Professores entediados buscaram novos ares e encontraram acolhimento nos “boxes” de CrossFit. Seus amigos e alunos, viciados em endorfina e conhecidos também como “ratos de academia”, passaram a se interessar e seguir a tendência de seus amigos professores. Muitas pessoas tiveram sua primeira experiência física no Crossfit naquela época, mas com certeza a maior parte do público era composta por pessoas viciadas em treinamento, todos estavam atrás de algo novo que pudesse motivar e principalmente desafiar o condicionamento físico existente. Criava-se ali um novo universo, com hábitos que iam além dos aspectos técnicos do treinamento. Esse novo comportamento tinha linguagem própria, códigos de vestimenta e seus princípios morais e éticos. Os traços comportamentais característicos criavam uma nova tribo dentro de um universo já existente (universo fitness) e, a cada novo adepto, mais uma pessoa chata que tentava explicar porque CrossFit era a melhor coisa do mundo. O fenômeno social era muitas vezes parecido com o de pessoas que se convertem em uma religião e, assim que eram batizados, queriam levar todo mundo para o mesmo lugar que freqüentava e lhe fazia bem.


Esse fenômeno social sempre me chamou atenção, principalmente agora, porque tenho observado o retorno de alguns desses praticantes novamente para as grandes academias de rede. Muitos alunos de CrossFit (que um dia se viram entediados com os treinos e proposta da musculação) retornam para as academias com a intenção de modelar o formato do corpo e melhorar a aparência aderindo ao fisiculturismo amador (alguns até mesmo competindo esportivamente).


Não faço minha observação com ar de crítica, observo apenas o fluxo das pessoas como algo muito normal. Esse público que retorna para as academias carrega consigo as experiências vividas nos “boxes” e volta com uma relação e comportamento diferente com a nova/velha atividade física que se propõe a fazer. Acho honestamente enriquecedor para todos que viveram isso, é como visitar e viver outras culturas e, quando retornar ao ponto de origem, trazer, compartilhar e ensinar suas experiências para o lugar de origem também acompanhar sua transformação. Além disso, hoje percebo uma proporção maior de pessoas “de primeira atividade” nos “boxes” de CrossFit e MMT (treinamento de modalidade mista) o que no meu ponto de vista é um excelente sinal. Precisamos aumentar o número da população ativa fisicamente e não apenas disputar audiência com quem já é adepto ao estilo de vida saudável.


Telêmaco Martins

CREF 024956-G/SP